Autorizada experiência

Nayara Melo
3 min readJul 20, 2022

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O último texto, eu estava coberta de sentimentos e deixei eles esvaírem, era necessário.

Tem dia que eu quero correr com esse processo, adiantar adaptações, formas e caminhos. Mas não tem como adiantar, tem que passar. Hoje, eu não choro mais aos domingos, a última vez que chorei foi quando o tio de uma grande amiga faleceu, e eu chorei por não estar com ela, e por também perceber que em todos os velórios de sua família, eu estive, quando criança e enquanto adulta. Chorei pela família dele que tanto me abraçou e tenho carinho.

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Uma nova cidade na vida adulta, por vezes é muito difícil e por vezes também é convidativo. Eu amo conversar com meus amigos, falar com todas as minhas expressões e ritmos, eu ainda não me sinto relaxada o suficiente para deixar minha boca espalhar meu vocabulário. “Pronto” ao final das frases não faz muito sentido. Descobri recentemente que “largar” também não é um verbo muito comum pra falar sobre sair do trabalho ao final do turno.

Não queria ter que me explicar, dizer de onde sou e ver meu sotaque ser imitado por diferentes pessoas. Como disse a uma pessoa próxima: “eu sei quem eu sou, não preciso que me digam”. Existe um processo em se sentir autorizada em residir nesse novo ambiente. E eu resido, mas as linhas de recepção, de se tornar parte, de “como os lugares se tornam casa”, são formados em experiência. Não propriamente na mudança, mas na permanência.

É quando vou a um museu e mostro meu comprovante de residência, e posso entrar com o “benefício de morador”. Ou quando retorno de viagem e percebo que estou voltando para casa, mas também nos tropeços de minha língua no meio de minha ligação com minha vó, digo “Voltei, já estou em Recife. Eita, Niterói.” Por outros, estou a duas semanas procurando alguém para cortar meu cabelo, alguém que corte com máquina e tesoura.

Por muito tempo, lidei com esse “não lugar”, esse trânsito, mas ao mesmo tempo, era um trânsito de pequenas distâncias. Atualmente, lido vários trânsitos de mim, dias silenciosos, dias que preciso pegar ônibus diferentes para retornar para casa, não por necessidade, mas para aprender. E tudo isso faz parte.

Lucas me disse recentemente, que eu já estava “tão local”. Foi bom ver essas palavras, até para me ver nelas. Pois vez ou outra me sinto estrangeira quando abro minha boca e meus T secos, e D afinados ecoam na sala, e não penso em perder sotaque, mas que eu não perceba mais minhas palavras soarem estridentes no bar.

Talvez, eu sonhe demais em um mundo que a diferença não seja notada. Eu gosto de ser diferente, de ter viajado muito, de ter várias histórias pra contar das roubadas que me meti, de falar ‘mulher’ pra todo mundo, ‘dê lugar’, ‘se lasque’, ‘dale’. É muito mais sobre a existência do outro sem o olhar do “eu já sei”, de preconceito, de achar que “todo nordestino…” seja lá o que for o nordeste, pois no momento, eu não sei. É permitir que eu exista, na diferença, sotaque, autorizada em experiência a contar minhas histórias, aprender as suas e você aprender as minhas.

É sobre criar memórias. Pois pertencimento é sobre memórias, histórias, raízes. Nessa vida globalizada, meio doida, meio acelerada, eu sinto que tenho muito a contar, por ter pertencido a tantos lugares, mas eu também sinto que tenho muito a escutar. E nesse momento de criar memórias, me vejo intencional, em me dispor, em fazer acontecer, memórias não do caso, mas de vontade e desejo em cada vez, me observar autorizada.

O mar quando quebra na praia
É bonito…
É bonito…

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Nayara Melo

Sobre mudanças, cidades, e uns textos aleatórios. De quem anda muito, um diário do meu interior