O sentimento do mundo

Nayara Melo
3 min readJul 14, 2022

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Um dia, Ábia (alagoana) disse a Lucas que ela funcionava com “metade do repertório” quando estava no Rio. Ao compartilharmos essa conversa, lembro de compreender o que Ábia falava ao dizer que era metade. Nos últimos dias, eu entendo, por estar. São processos diários, por vezes violentos, outros só sentidos mesmo, minuciosos, mas sentidos.

Desses processos, alguns fatos me percorreram de início e ainda me percorrem, com intensidades menores, mas se encontram pairando em mim: Nordestinidade, Pernambucanidade e Racialização. Todos com letras maiúsculas pois são processos legítimos, e nisso vejo o quanto a sociologia afetou em minhas leituras de mundo.

Eu sinto. Sinto muito.

Tem dias que me observo com um corpo poroso, um receptáculo de sons, lugares e pessoas. De como tudo me afeta, positivamente e de outras formas, de como, a vida é dolorida e agridoce. E dessa porosidade, me deparo com a palavra “nordeste” e suas variações. O que é nordeste? Pergunto repetidas vezes, algumas dentro da cabeça, outras de forma externa. O que é comida nordestina? São signos que nem sempre me vestem, na verdade, não me vestem e ao mesmo tempo sim. É complexo. À vista dos olhares, encontro-me simplificada a gostar de forró e logo ter “que ir no restaurante X de comida nordestina”. É como se me vendessem uma identidade que não me cabe. Como diria Durval Jr, o nordeste é uma invenção. É um amálgama que simplifica e reduz 9 estados. Eu não sou capaz de falar pelo Maranhão, de falar pelo Ceará, eu nunca fui nesses estados, eu não posso representar eles. Eu posso falar do que vivi, do que nasci, nasci Pernambuco.

Existe uma megalomania pernambucana, e sobretudo uma megalomania recifense. E nesse momento, peço licença, é uma vivência pessoal, não estou a simplificar as coisas, precisamos pessoalizar as experiências e identidades. Recife é maior em linha reta da América Latina, é a avenida, é onde o nasce o oceano atlântico, é onde o mundo nasce — nas palavras de Cícero Dias. A gente canta o hino do estado no carnaval, é uma identidade e um senso de pertencimento muito grande, é uma forma de comunicar e viver.

E agora talvez, eu só tenha que sentir. Sentir muito.

por do sol, mar, formações rochosas a esquerda e direita da foto, com uma base petroleira ao fundo

Recife não é aqui e nunca será, essa parte eu já sei e me mudei sabendo. Mas gostaria que não quisessem me transportar pra lá, porque nunca será igual. Um show de Lenine, nunca será igual, a comida também não, um forró também não. Não há como igualar. De semelhante forma, uma roda de samba nunca será como aqui. Cada lugar tem seu fruto específico. Não tentem me transportar ao que não há. Seria me entregar caricaturas do que realmente conheço. Eu sinto saudade, mas também não me vejo na recife que morei, pois eu mudei nesse meio tempo e a cidade também. A saudade é o cultivo da ausência de algo que já foi. Desse jeito, vejo que em breve esse sentimento do mundo, grande que me consome, breve me deixará, e olharei aos dias silenciosos na paz da ausência.

Sinto.

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Nayara Melo

Sobre mudanças, cidades, e uns textos aleatórios. De quem anda muito, um diário do meu interior